Será o fim do bipartidarismo em Moçambique?
- Priscilla Marques Campos
Como figura política, Venâncio Mondlane personifica e reflete uma das questões centrais do processo de paz e reconciliação moçambicano: a inclusão política, ou a falta dela.
O ditado “o inimigo do meu inimigo, é meu amigo” nos daria boas pistas para entender o que está acontecendo atualmente entre Frenamo (alusão a uma suposta aliança entre a Frelimo e a Renamo em questões de interesse comum) e o partido Podemos (Povo Otimista para o Desenvolvimento de Moçambique) em Moçambique.
No dia 9 de outubro, os moçambicanos exerceram seu direito ao voto na sétima eleição geral do país desde 1994. No entanto, observadores locais e internacionais, como a Plataforma de Observação Eleitoral Mais Integridade e a Missão de Observação Eleitoral da UE em Moçambique, apontaram para um processo eleitoral marcado por irregularidades, como enchimento de urnas, falsos observadores registrados pela Frelimo, eleitores fantasmas etc. Nesse contexto, Venâncio Mondlane, apoiado pelo Podemos, surgiu como a segunda força eleitoral na história do país a desafiar tanto a Frelimo, partido no poder desde a independência, quanto a Renamo, principal partido de oposição desde 1994.
Mondlane iniciou sua carreira política em 2013 no MDM (Movimento Democrático de Moçambique), um pequeno partido de oposição fundado em 2009. Após a morte do líder histórico da Renamo, Afonso Dhlakama, em 2018, Mondlane ingressou na Renamo e foi vitorioso nas eleições municipais de 2023, para a cidade de Maputo. Embora contagens paralelas tenham dado a Mondlane uma maioria de cerca de 50% dos votos, os órgãos oficiais atribuíram os mesmos números à Frelimo. Nesse contexto, Mondlane destacou-se como um dos principais expoentes da chamada Revolução Azul (em referência à cor da Renamo), uma série de protestos e manifestações com grande mobilização e participação da juventude moçambicana. Muitas dessas manifestações tomaram como lema “Povo no Poder”, do falecido rapper Azagaia, e foram violentamente reprimidas pelas forças de segurança moçambicanas.
Após uma luta interna de poder com o atual líder da Renamo, Ossufo Momade, Mondlane deixou o partido. Impedido de concorrer às eleições apoiado pela CAD (Coligação Aliança Democrática), sua candidatura foi apoiada pelo Podemos. Mondlane reivindicou vitória com base em contagens paralelas numa eleição presidencial em que a Frelimo foi manchada por irregularidades eleitorais amplamente denunciadas, e a Renamo perdeu sua posição de líder da oposição. O resultado é a fraqueza da Renamo como uma oposição historicamente sedenta por poder e a fragilidade da Frelimo como centro de poder que concentrou e distribuiu o acesso aos recursos do Estado. Também observa-se um fortalecimento do Podemos como uma oposição que rompe de maneira inédita com uma disputa democrática baseada na rivalidade histórica entre Frelimo e Renamo.
Num sentido mais amplo, Mondlane personifica e reflete uma das questões centrais do processo de paz e reconciliação moçambicano: a inclusão política, ou a falta dela. Uma breve incursão histórica ajudará a contextualizar isso.
Moçambique e seu povo viveram quase trinta anos de guerra contínua: a Luta de Libertação contra o colonialismo português (1964-1974) e a guerra civil de 16 anos entre a Frelimo e a Renamo (1976-1992). Guerras que deixaram o país em ruínas, uma população marcada pela dor e sofrimento em seus corpos e memórias, e um enorme potencial de violência. Na esperança de paz e reconciliação, três sucessivos acordos de paz e leis de anistia foram assinados e aprovados pelas lideranças da Frelimo e da Renamo em 1992, 2014 e 2019. No centro do conflito entre essas forças políticas esteve a referida inclusão política, ou a falta dela, que se manifestou ao longo dos anos em diversas disputas, como o caso de descentralização política e a “despartidarização” do Estado moçambicano. Esses processos foram permeados por recorrentes irregularidades eleitorais e pelo crescente controle da Frelimo sobre as instituições eleitorais, o que garantiu sua permanência no poder.
Dois episódios podem ilustrar o acesso limitado à representação política em Moçambique para aqueles fora do círculo especial da Frelimo. O primeiro refere-se às eleições gerais de 1999, quando Joaquim Chissano foi reeleito com uma margem de apenas 200 mil votos sobre o líder da Renamo, Afonso Dhlakama, num processo eleitoral em que 600 mil votos foram declarados inválidos. A Renamo e seu líder rejeitaram esse resultado e todos os demais que se seguiram. Para muitos membros da Renamo e seus apoiadores, a vitória da Renamo foi roubada com base em fraudes eleitorais.
No contexto da retomada do conflito armado, o segundo episódio foi aquele que seguiu o Acordo de Cessação Definitiva das Hostilidades Militares assinado pouco antes das eleições gerais de 2014. A Renamo contestou fortemente os resultados eleitorais, acusando a Frelimo de fraude, e exigiu o direito de nomear governadores nas cinco províncias centrais onde Dhlakama havia conquistado a maioria dos votos presidenciais – Nampula, Tete, Zambézia, Sofala e Manica. Na ausência de um compromisso entre a Frelimo e a Renamo, os ataques armados foram retomados, e um novo acordo de paz só foi assinado em 2019.
Nesse cenário, Mondlane rompeu com a rivalidade histórica bipartidária de Moçambique e mais uma vez trouxe à tona a exclusão política que prevalece no país. Foi nesse contexto que o presidente Filipe Nyusi encerrou seu mandato sob o espectro da violência política, manifestada nos assassinatos de Elvino Dias e Paulo Guambe, líderes da CAD e do Podemos, respectivamente. O processo de paz e reconciliação que ele liderou em nome da Frelimo, no âmbito do Acordo de Maputo, assinado em 2019, também está ameaçado. Embora o processo de desmobilização, desarmamento e reintegração (DDR), parte integrante desse acordo, tenha gerado esperanças (ainda que limitadas), as irregularidades nas eleições de 2023 e 2024 lançam uma sombra, sugerindo uma deterioração ainda maior no acesso à representação política e uma escalada em direção à eliminação física do “inimigo”.