Contradições africanas no mundo das ciências

A contribuição africana no mundo globalizado não pode ser celebrada enquanto o lugar ocupado pelos povos africanos for o da periferia.

A worker gently cleaning the dust and other contaminants off one of the ancient Timbuktu manuscripts. Image credit Mark Fischer via Flickr CC BY-SA 2.0.

No último dia 30 de junho foi celebrado o “Dia do Renascimento Científico de África: A Contribuição de África para a Ciência e a Tecnologia” (DSRA). A data foi criada em 1987, em Adis Abeba (Etiópia), pela Organization of African Unity (OAU), hoje conhecida como African Union (AU), para ser celebrada em todos os países membros. A data foi criada em nome do reconhecimento da ciência e tecnologia modernas africanas para o mundo. Além disso, ressalta-se também toda tecnologia ancestral e milenar presentes no continente, conectadas com a natureza, a cura de doenças com medicinas da floresta, a interpretação de padrões climáticos, sustentabilidade, segurança alimentar etc. 

Reconhecemos como o epistemicídio, conceito filosófico elaborado por Sueli Carneiro, um meio pelo qual a branquitude europeia, durante o período da escravidão, desqualificou os saberes e tradições africanas como estratégia para dominá-los e desqualificá-los como sujeitos cognoscentes. Provocando o ocultamento das contribuições do continente africano ao patrimônio cultural da humanidade, principalmente, negando aos africanos e afrodescendentes a condição de sujeitos do conhecimento de sua própria história. Destacando como contraposição para esse entendimento, a obra “Gênios da Humanidade: Ciência, Tecnologia e Inovação Africana e Afrodescendente”, de Carlos Eduardo Dias Machado e Alexandra Baldeh Loras (2017), que desenvolveram um estudo sobre a participação histórica africana nas ciências exatas, biológicas e humanas que foram marginalizadas pelo eurocentrismo, nos tempos modernos.

Na visão eurocêntrica, em que o livro se constituiu como o principal veículo da herança cultural e que a escrita teria precedência sobre a oralidade, durante muito tempo julgou-se que os povos ágrafos eram desprovidos de ciência e conhecimento. Vale destacar, em consonância com Cheikh Anta Diop, que além de diversas civilizações humanas ágrafas, também civilizações com escritas próprias se originaram em África.

Considera-se, portanto, conforme mencionou a Ìyálòrìsá Marli Ògún Méjìre Azevedo que as fontes científicas são de diversas origens como os documentos escritos; a arqueologia (testemunhos materiais mudos que revelam contribuições valiosas à história africana, objetos de ferro e a tecnologia envolvida em sua fabricação, objetos de cerâmica com suas técnicas de produção e estilo, escrituras e símbolos gráficos); e a tradição oral (repositório e vetor do capital de criações socioculturais acumulados pelos povos ditos ágrafos).

A data mencionada foi marcada como um (re)nascimento, para fortalecer o diálogo entre os governantes africanos num geral nos dias atuais, para destacar as potencialidades presentes nas descobertas científicas por africanos para o desenvolvimento social da humanidade. A celebração desse dia costuma acontecer também em universidades africanas, como exemplo, o evento ocorrido na Gana University que reuniu especialistas para debater os desafios da mineração ilegal, soluções para reduzir seus efeitos no meio ambiente e na área da saúde.

Outro marco para a área dos African Studies, foi a coleção editada pela UNESCO, chamada “História Geral da África”, composta por 8 volumes publicados. Em novembro de 2023, houve o lançamento do volume 10, durante o III Fórum Global contra o Racismo e a Discriminação da UNESCO, em São Paulo (Brasil), sob o subtítulo “A África Global”, inserindo a discussão da diáspora africana como parte integrante dos conhecimentos sobre as Áfricas. A movimentação para a elaboração dessa série de livros, começou nos anos 60, com a grande onda de independências no continente, quando parte significativa dos governantes e acadêmicos estavam voltados para a escrita da História de África, numa perspectiva africana que rompesse com o legado das bibliotecas coloniais eurocêntricas. 

O início desse projeto em 1964 envolveu centenas de historiadores e outros especialistas para a produção dessa coletânea, enfrentando muitos desafios para sua construção. É possível acessar o material em português, inglês, espanhol, italiano, francês, chinês, árabe, japonês, swahili, fulani e haussá. As temáticas centrais foram sobre as metodologias de pesquisa com fontes orais e arqueológicas bem como, análises desde a antiguidade, até o ano de 1935. Sua recepção foi muito significativa, recebendo forte interlocução no campo das Ciências Humanas, num geral, e também foi alvo de muitas críticas, por diversos âmbitos. Sem dúvida, foi uma das coleções mais importantes no século XX, com contribuições para o processo geral das humanidades, sendo parte de uma grande revolução epistemológica do ponto de vista acadêmico e científico.

Destaque-se que o “Dia do Renascimento Científico de África”, que celebra as contribuições do continente para a ciências humanas e tecnológicas, oferece um contraponto amargo quando consideramos a realidade por trás da extração de recursos naturais, como o cobalto. A violência e opressão envolvidas nesta indústria são exemplos de como a globalização capitalista se beneficia às custas de muitos, perpetuando um ciclo de desigualdade entre o norte e o sul global. O minério tem sido apelidado como “cobalto de sangue”, em analogia aos “diamantes de sangue”, explorados na Serra Leoa nos anos 90, para alertar sobre os impactos devastadores dessa exploração.

O cobalto, é um elemento essencial para a produção de baterias de lítio, tem sido apontado como uma alternativa sustentável para veículos elétricos e dispositivos eletrônicos. No entanto, a exploração de suas minas, especialmente na República Democrática do Congo (RDC), levanta sérias preocupações devido às péssimas condições de trabalho, inclusive infantil. A RDC é responsável por cerca de 60% da produção mundial de cobalto, e os relatos de abusos dos direitos humanos e condições análogas à escravidão são alarmantes.

Apesar das promessas de reforma por parte da indústria e das grandes empresas tecnológicas, como Apple e Google, que utilizam o cobalto em seus produtos, a demanda pelo metal continua a crescer. Em 2016, a Anistia Internacional denunciou o uso de trabalho infantil nas minas da RDC, ligando grandes corporações a essas práticas. Contudo, um tribunal dos EUA recentemente se recusou a responsabilizar as empresas por essas violações, o que evidencia a dificuldade em se obter justiça.

Sendo assim, a contradição que apresentamos aqui, ressaltou que embora nos séculos XX-XXI nós tenhamos feito denúncias substanciais sobre o racismo presente nas ciências humanas, e avanços na contribuição científica e social dos africanos na história da humanidade, ainda há muita luta para ser feita, como dizia Amilcar Cabral “a luta continua”.

A contribuição africana no mundo globalizado não pode ser celebrada enquanto o lugar ocupado pelos povos africanos for o da periferia na divisão social do trabalho, relegando para eles condições de vida violenta e desumana, como o exemplo da exploração dos trabalhadores nas minas de cobalto na RDC.

As empresas envolvidas como a Huayou Cobalt e a Gecamines, que lucram milhões de dólares no comércio dos recursos minerais, devem ser responsabilizadas e punidas, e as denúncias amplamente divulgadas. Não queremos que a história se repita, o discurso da falsa sustentabilidade dos carros elétricos, busca mascarar a verdade por meio de um suposto desenvolvimento tecnológico, que não deve ser alcançado à custa da dignidade humana.

 

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