À sombra de Mondlane
Depois de uma eleição histórica e em vésperas de celebrar os 50 anos de independência, os moçambicanos precisam de perguntar se os valores, símbolos e instituições criados para dar forma à “unidade nacional” ainda são legítimos hoje.
No dia 9 de Outubro de 2024, Moçambique realizou as suas sétimas eleições presidenciais, desde a abertura política e a instauração do multipartidarismo, em 1992. Até então, o país vivia sob um regime de partido único, liderado pela Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) como consequência de um processo de independência, em 1975, conquistado no contexto da Guerra Fria, em que o país alinhou-se ao bloco socialista a nível geopolítico. Entretanto, desde as primeiras eleições gerais, em 1994, o partido no poder tem vencido todos os pleitos, em grande medida, devido ao controle que, historicamente, sempre exerceu sobre o aparelho de Estado, dispondo das instituições públicas invariavelmente a seu favor. Tal estado de coisas tem gerado uma desconfiança generalizada a respeito da transparência do processo eleitoral moçambicano em diversos setores da sociedade, a nível interno e externo. E, ao que tudo indica, as atuais eleições parecem mostrar que chegou-se a um ponto crítico, de saturação de um sistema político viciado e desgastado ao longo de quase cinco décadas comandado por um mesmo grupo político.
Assim como tem-se verificado em todas as eleições anteriores, o pleito de 2024 caracterizou-se pelas recorrentes práticas de ilícitos eleitorais dos mais diversos tipos, na maioria das vezes, com o objetivo de favorecer o partido Frelimo. Tal percepção não resume-se apenas a queixas dos seus opositores políticos, mas também tem sido consenso na opinião pública, entre observadores nacionais e internacionais, para além de diversos estudos e relatórios públicos que demonstram esta tendência histórica. O ponto crítico acima referido deve-se ao fato de que, desde as eleiçõs autárquicas de 2023, os níveis de contestação popular e da sociedade em geral aos resultados eleitorais atingiram graus elevados, com manifestações violentas respondidas com repressão policial igualmente violenta e desproporcional. Daí que, desde então, vive-se em Moçambique uma situação de tensão política e social, agravada pelo aumento da pobreza e precarização geral das condições de vida da população. Há, efetivamente, um sentimento de descontamento geral em relação ao presente e ao futuro do país, muitas vezes, interpretado como consequência direta da excessiva concentração de poder político, económico, ideológico e institucional nas mãos de uma única força política.
Como pano de fundo simbólico, o país encontra-se às vesperas de assinalar os 50 anos da sua independência política de Portugal que, entretanto, ocorre num momento de profunda crise nacional. Naturalmente que um marco histórico de tal dimensão traz consigo todo um conjunto de reflexões e auto-análises no sentido de fazer um balanço do que foram estas cinco décadas. Isto verifica-se não apenas em Moçambique, mas também em outras ex-colónias portuguesas no continente, cujos processos históricos recentes estão diretamente conectados. Neste sentido, um fato ocorrido duas semanas antes da votação ajuda-nos a compfeender o significado histórico mais profundo que os acontecimentos atuais trazem à tona.
No dia 25 de Setembro de 2024, celebraram-se os 60 anos do início da Luta Armada de Libertação Nacional, como é chamado o processo político e militar de enfrentamento ao colonialismo português, iniciado em 1964. Em comemoração, foi inaugurada no mesmo dia na Cidade de Maputo, uma estátua de Eduardo Mondlane, fundador e primeiro presidente da Frelimo, consagrado na história oficial como o “arquiteto da unidade nacional”. O que, a princípio seria uma ação pacífica e de fácil consenso na sociedade, transformou-se logo num grande transtorno para o governo devido à elevada rejeição por parte da opinião pública em relação à estátua. Para a maior parte do público e da crítica, esta não corresponderia às carcaterísticas físicas do homenageado, para além de apresentar alegados graves erros de proporção e dinâmica física. O descontentamento generalizado em relação ao resultado foi tamanho, a ponto de levar o Ministério da Cultura a montar uma equipa técnica com o objetivo de avaliar a obra e, eventualmente, fazer as devidas correções.
À parte as questões técnicas e estéticas, este episódio é sintomático de uma problemática estrutural bastante profunda da sociedade moçambicana: a cultura política autoritária, como herança de uma nação construída sob um regime monolítico. Chama a atenção o fato de a inauguração de estátua, em substituição a uma anterior, no mesmo local, ter se realizado sem nenhum tipo de comunicação, auscultação ou interação com a sociedade. Dito de outra forma, o governo decidiu intervir sobre um importante símbolo e património cultural nacional ligado à própria construção do país sem, ao menos, envolver a comunidade de alguma forma. Independente do mérito administrativo, esta situação reforça uma percepção amplamente difundida no senso comum de “apropriação” do país por parte do partido no poder. Neste caso, estaríamos diante de uma apropriação da memória coletiva, mais precisamente, da memória da luta pela independência, frequentemente instrumentalizada como fonte de legitimação para a manutenção do poder da Frelimo.
Guardadas as devidas poporções e transpondo-se para a questão eleitoral, as alegações de fraude fundamentam-se nesta percepção, corroborada pelos fatos, da notória confusão entre partido, estado e governo em Moçambique. Isto porque as inúmeras denúncias de ilícitos eleitorais registados neste em em todos os outros pleitos apontam para instrumentalização de diversas instituições públicas, desde a polícia, funcionários e instalações do estado, os meios de comunicação, culminando nos próprios órgãos eleitorais e judiciários. No caso concreto da estátua, a sua inauguração às vesperas das eleições abre espaço para ainda mais especulações sobre o uso da maquina pública para promover o regime.
Como dito anteriormente, nada disto constitui novidade, a não ser o fato de que a atual contestação popular das eleiçoes ocorre num momento auspicioso de reconfiguração do quadro político moçambicano, marcado pelo enfraquecimento dos principais partidos de oposição histórica à Frelimo: Renamo e MDM. Tal vazio de poder, neste ano foi preenchido pelo partido PODEMOS, recentemente criado e catapultado à posição de maior ameaça real ao poder vigente através da liderança carismática do seu candidato, Venâncio Mondlane. Como membro da Renamo, VM7, como é conhecido, perdeu as eleições autárquicas de 2023 na Cidade de Maputo, capital do país, contra o candidato da Frelimo. Em resposta, liderou uma série de marchas e manifestações populares de contestação aos resultados das eleições, alegadamente fraudados, que terminaram em forte repressão da polícia em vários pontos do país.
Tais manifestações destacaram-se pela massiva mobilizaçao de jovens, que constituem a esmagadora parcela da população do país que, de acordo com dados da UNFPA, 80% tem menos de 35 anos e, metade tem menos de 16 anos. Trata-se de um segmento da população altamente descontente com as suas condições atuais e perspectivas de futuro, assombrada pelo desemprego, a pobreza e a violência. Para além da dimensão material, esta camada jovem não se identifica com o discurso ideológico oficial nacionalista, pois trata-se de uma geração pouco exposta à retórica da “Luta Armada” e de todo um conjunto de valores a ela associados. A própria adesão da juventude a Venâncio é também um reflexo dos novos tempos: boa parte da sua articulação e mobilização em torno do candidato tem-se dado por via da Internet e das redes sociais, “furando a bolha” dos órgãos oficiais de comunicação social, composta pela rádio e televisão públicas, bem como os principais jornais impressos de circulação nacional. Soma-se a isso o notório fortalecimento da sociedade civil moçambicana, que tem igualmente contribuído para dar voz e mobilizar não apenas esta juventude massiva, mas também diversos outros setores da sociedade que demandam por maior justiça social e respeito aos direitos humanos.
Enfim, o ponto de situação é de alto grau de tensão, alimentada por temores de irrupção de violência política. Os principais partidos e candidatos de oposição tem-se pronunciado publicamente a constestar os resultados parciais que tem sido divulgados pelos órgãos eleitorais oficiais, que apontam para uma vitória de Daniel Chapo, o candidato da Frelimo. Mais ainda: Venâncio Mondlane chegou a declarar-se como o legítimo vencedor do pleito, baseado nas contagens paralelas internas do seu partido, para além de ter convocado uma greve geral e manifestações em todo o país, caso os orgãos eleitorais confirmem a vitória do partido no poder. De tal modo que a conjuntura atual pode revelar-se, igualmente, num ponto de inflexão histórica para esta jovem nação, às vesperas do seu cinquentenário. Impõe-se aos moçambicanos, de forma dramática, a necessária reflexão acerca do seu próprio percurso histórico: em que medida os ideais, os valores, os símbolos e as instituições criadas para dar forma à “unidade nacional” permanecem válidos e legítimos nos dias de hoje?
O caso da inauguração da estátua de Mondlane no contexto das próprias eleições surge uma forte alegoria sintomática de como diversos setores da sociedade moçambicana tem sido historicamente alijados dos processos de decisão, concentrados nas mãos de um grupo específico. Concretamente, o ato de celebração de um herói nacional conduzido de forma unilateral e arbitrária revela um padrão de relacionamento entre estado e sociedade que, definitivamente, não contribui para o fortalecimento da democracia no país. Reforça, acima de tudo, a corrosão da credibilidade das instituições públicas em geral – e dos órgãos eleitorais, em particular – que é a causa fundamental do descontentamento popular e da ameaça de instabilidade e violência política presentes neste momento. Transpondo para o contexto africano mais amplo, trata-se da notória crise de legitimidade vivida por muitos dos movimentos libertadores africanos, tais como o ANC (África do Sul), o MPLA (Angola) e ZANU-FP (Zimbabwe), não por acaso, aliados históricos da Frelimo.
Diante do exposto, a questão que se coloca é a seguinte: seria tal crise de legitimidade um ponto de inflexão para uma espécie de “segunda independência” capaz de gerar uma nova “arquitetura da unidade nacional” em Moçambique?
Moçambique viveu no dia 19 de Outubro uma tragédia que veio a confirmar os piores temores quanto à instabilidade política decorrente de um processo eleitoral marcado por notórias irregularidades a favor do regime. Foram brutalmente assasinados Elvino Dias, advogado de Venâncio Mondlane, e Paulo Guambe, representante do partido PODEMOS, ambos destacados ativistas da oposição. Embora ainda não esclarecidas, as circunstâncias e o modus operandi do crime geraram repúdio e indignação por parte de amplos setores da sociedade e da comunidade internacional. Entretanto e conforme esperado, no dia 24 de Outubro, os órgãos eleitorais oficiais anunciaram a vitória de Daniel Chapo, o candidato da Frelimo, com 70% dos votos. Como resultado, verificou-se, em diversos pontos do país, a intensificação das manifestações populares em contestação, prontamente respondidas com dura repressão policial, incluindo prisões e até mortes. Enfim, é sob este ambiente de grande tensão política que se vive após a divulgação dos resultados oficiais destas eleições que prometem mudar os rumos da História, como muitos dizem e desejam pelas ruas do país.