A primeira diaspora africana
O sucesso de Cabo Verde no campeonato africano das nações suspendeu temporariamente o debate sobre a identidade do povo.
O futebol por vezes pode ser um catalisador de emoções e é capaz de unir os corações de um povo inteiro. Sobretudo se esse povo conta apenas com meio milhão de pessoas, distribuídas por nove ilhas habitadas da nação-arquipélago.
As ilhas de Cabo Verde situam-se a pouco mais de 500 milhas da costa do Senegal, na África Ocidental. A sua independência, conquistada após anos de luta armada nas matas da Guiné, no continente, foi conseguida em 1975. O líder desse movimento de libertação, chamado PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) foi Amílcar Cabral, um dos nomes mais importantes da libertação de África.
Quando os navegadores portugueses chegaram, no final do século XV, elas estavam desertas, não eram habitadas. As primeiras populações foram homens e mulheres escravizados trazidos da costa africana, no início do tráfico negreiro, para serem negociados e vendidos para as Américas. Mas esse tráfico negreiro, nas ilhas, durou apenas dois séculos.
Homens e mulheres negros misturam-se com colonos vindos da Europa e fizeram a sociedade crioula, mestiça, que hoje compõe Cabo Verde. A grande conquista foi a não existência de racismo baseado na cor da pele de cada indivíduo. Brancos, negros, mulatos e mestiços sempre lutaram lado a lado, primeiro contra piratas franceses e ingleses, e depois contra as longas secas que provocavam fomes e dizimavam as populações das ilhas, ao longo de séculos.
É essa composição étnica do povo de Cabo Verde que aqueles que seguiram os jogos da Copa Africana de Futebol puderam ver no campo do jogo, mas também nas bancadas, nos seus apoiantes: homens e mulheres negros, brancos, mestiços. O que também esteve espelhado em cada jogador da equipa nacional foi a história da diáspora cabo-verdiana, que começou muito cedo.
Por causa das fomes e das secas, desde muito cedo e logo que isso se tornou possível, homens e mulheres das ilhas procuraram emigrar, fugir da miséria e encontrar melhores condições de vida no estrangeiro: primeiro na América, depois no continente africano, América do Sul e no final do século XX, na Europa. Atualmente, existem três vezes mais população cabo-verdiana no exterior das ilhas do que no país. O que faz com que a nação cabo-verdiana seja uma nação que se prolonga para lá dos limites físicos das ilhas, para lá das suas fronteiras marítimas. Assim, grande parte dos jogadores da equipa nacional nasceu fora das ilhas: na Holanda, em Portugal e em França. Mas o apelo da sua cultura de raiz das ilhas, faz com que eles tenham o maior orgulho em representar a equipa nacional.
A emigração dos cabo-verdianos tornou a língua crioula ainda mais importante, porque é através dela que a comunicação com os familiares, que ficaram nas ilhas, se faz. A língua, o crioulo de Cabo Verde, é a coluna vertebral, o pilar, que sustenta todo o edifício identitário dos cabo-verdianos. E através da língua vem a sua música, conhecida em todo o mundo graças à voz da cantora Cesária Évora, quem, depois dos anos 90, tornou-se numa espécie de embaixadora da música e da cultura das ilhas.
Faz poucas semanas, foi apresentado um livro, na capital, na cidade da Praia, em que um antropólogo nacional, de nome Manuel Brito-Semedo, defendeu a tese de as ilhas cabo-verdianas não serem verdadeiras ilhas africanas. Esta tese afirma, também, que o lado africano da cultura de Cabo Verde tem sido ‘forçado’ e dado mais primazia, mais importância, desde a independência das ilhas, ocorrida a 5 de Julho de 1975. Ele defende que os aspectos da cultura mestiça, mais ligada à Europa, são remetidos para segundo plano. O argumento do Brito-Semedo, é que houve a necessidade de os ‘pais’ da independência associarem as ilhas crioulas ao continente africano, de forma a legitimar um pan-africanismo mais forte, de modo a trazer as ilhas mais para a sua raiz africana.
Esta posição reflete uma corrente de pensamento que já vem de muito longe, desde a primeira metade do século XX. Nessa altura, vários intelectuais, escritores e poetas, defendiam esta ideia de uma cultura mestiça, composta de brancos e negros, e portanto, mais atlântica do que propriamente africana. Os próprios colonizadores portugueses, incutiram esta ideia de uma certa superioridade, dos cabo-verdianos, em relação aos povos da costa africana.
Este livro e as suas ideias provocaram algum desconforto na sociedade cabo-verdiana, seguida de alguma contestação. Muita gente não ficou contente com a defesa desta tese e deram como exemplo o próprio desempenho da equipa nacional de futebol no campeonato africano de futebol, que decorreu na Costa do Marfim.
O campeonato africano das nações é um dos raros momentos em que hoje se pode viver o pan-africanismo sonhado pelos grandes líderes do continente. Cada dois anos, da cidade do Cairo a Cidade do Cabo, os africanos deixam de lado os seus problemas do dia a dia, por causa do futebol continental. Nenhum outro evento social ou desportivo tem esta capacidade de entusiasmar, jovens e adultos, mulheres e homens, pobres e ricos. Nas bancadas podemos ver o colorido das bandeiras e o entusiasmo dos adeptos, numa festa que preenche o estádio. As cidades param, os cafés ficam cheios de gente que segue a sua equipa nacional. Muitas vezes, é a única oportunidade para poderem descobrir outros povos, outras culturas que também fazem parte do seu continente.
Como foi o caso da equipa nacional de Cabo Verde. Muitos africanos nunca tinham ouvido falar destas ilhas. Com as vitórias obtidas, o país ficou mais conhecido. Mas, o certo é que toda a nação de Cabo Verde, quer nas ilhas, quer na diáspora, ficou unida em torno do sucesso da equipa nacional, os Tubarões Azuis, que conseguiram vencer países muito maiores e com muito mais população, como o Gana, Moçambique, Egito e Mauritânia. Mas também, no campeonato africano de handebol a equipa nacional teve sucesso e até o ano passado era a equipa vice-campeã de África nesta modalidade.
Assim, vemos como a identidade do povo destas ilhas é uma questão que, de vez em quando, volta à mesa do debate e da discussão. As suas origens, na mistura de brancos e negros, e o facto de se situar junto ao continente africano, coloca sempre esta questão existencial de onde vimos, o que somos e para onde vamos.
Alguém já disse que as ilhas de Cabo Verde são uma espécie de ilhas das Caraíbas, mas que nunca seguiram viagem, nunca saíram do Atlântico. Aponta o exemplo de Cuba, Haiti e a Bahia, no Brasil. Nestes lugares, a africanidade dos rituais religiosos, com deuses africanos, como os Orixás, Iemanjá, etc, estão presentes nos cultos de Santeria (Cuba), Vodu (Haiti) e Candomblé (Bahia, Brasil). Em Cabo Verde, não existe nenhum destes cultos africanos, nem de deuses africanos. A religião é católica e os costumes são iguais a qualquer país do Sul da Europa. Na verdade, isso aconteceu porque, quando chegou, o negro africano escravizado perdeu o seu nome e a sua religião de origem e teve de aprender a viver de outra maneira. Os padres portugueses baptizavam-no de Manuel, António, Paulo João, etc. Cabo Verde é o primeiro destino da diáspora africana. Antes de terem chegado à América, Caraíbas ou Brasil, os primeiros escravos africanos, que foram arrancados das suas terras, vieram para Cabo Verde, no início do século XVI. Só depois é que iriam fazer o tráfico negreiro.
Mas, durante alguns dias da festa do futebol, toda a gente ficou unida em volta da equipa nacional. E todos se sentiram profundamente orgulhosos do sucesso que a equipa nacional obteve no campo. Ninguém pensou em questões de origem, se são negros, brancos, claros, mestiços.
Todos se sentiram, orgulhosamente, cabo-verdianos. E todos sabem que aqueles africanos do continente, também são seus irmãos, filhos de seus antepassados. Familiares distantes que um dia, há vários séculos, os homens e a História separou.